Os Trapalhões e o Mágico de Oroz

Esse texto recebi de um primo meu por e-mail, resolvi postá-lo, pois tem tudo haver com o nosso conteúdo de discussão. O texto é de Felipe Bragança.

Os Trapalhões e o Mágico de Oroz, de Dedé Santana e Vitor Lustosa.

Sexto e penúltimo filme da fase temática sobre ícones das mazelas sociais brasileiras, O Mágico de Oroz traz o quarteto Os Trapalhões no ápice de sua representatividade midiática, quando tinham se tornado os principais interlocutores com o público de cinema brasileiro (principalmente o infantil) e uma referência central na constituição do imaginário audiovisual pré-abertura política.

Esse sucesso de massas, articulado à parceria com o projeto estatal da Embrafilme, fez de O Mágico de Oroz um filme-síntese do que de melhor e pior havia conseguido o cinema dOs Trapalhões até então. Depois da fase mágico-fantasiosa, baseada em paródias do universo pop e dos contos de fada (retratada no documentário O Mundo Mágico dos Trapalhões – 1981) e de uma série de filmes de
crônica/denúncia social, O Mágico de Oroz se destaca entre os títulos lançados em DVD por tentar reunir, num mesmo filme, essas duas tendências.


Falar diretamente da seca nordestina, da manipulação política da seca por um coronel ganancioso, e ainda se colocar numa sintonia paródica com um dos maiores clássicos da indústria hollywoodiana era um desafio complexo, pretensioso, e pelo qual Os Trapalhões caminham numa série de passagens memoráveis e dificuldades narrativas significativas.

É importante observar que, a essa altura, a escolha dos papéis que cada um representaria dentro do universo parodiado se dá num duplo movimento: isso é, as personas Didi, Dedé, Mussum e Zacarias são comentários sobre as figuras de Dorothy, Espantalho, Homem de Lata e Leão Covarde; assim como esses últimos são comentários sobre o próprio papel que cada um dos Trapalhões representava dentro do quarteto. Já conhecidos em seus mínimos detalhes pelo grande público em suas funcionalidades dramáticas, tornam-se, eles mesmos, objeto de comentário. E assim se dá:

Didi é Dorothy (herói ingênuo e errante, sem lar, inconsequente, em busca de uma forma de poder voltar para sua casa – retirante); Dedé é o Leão Covarde (misturando a figura do clown - palhaço meticuloso que serve de escada para as piadas dos outros - com a idéia da figura assustadora/autoritária que esconde sua grande covardia); Mussum é o Homem-de-Lata (solitário malandro carioca e beberrão, sofre com a falta de um coração – “a pinga não traz felicidade”); e Zacarias é o Espantalho (ingênuo e interiorano – é a figura da fragilidade em busca de “miolos” que o façam menos manipulável).

Prova da riqueza que a figura dos Trapalhões traziam para um argumento cinematográfico, essa apropriação do filme das imagens acumuladas na memória do público (a repetição) é uma das marcas do grupo. É impossível imaginar quanto o argumento de Arnaud Rodriguez perderia de sua força dramática se, no lugar do quarteto, estivessem outros comediantes (de igual ou maior talento individual, inclusive). Pois a maior marca do quarteto é justamente o vasto universo de interações possíveis, através de uma repetição constante de bordões e chistes, que reafirmam suas funcionalidades. O modo de falar, as caretas recorrentes, as acrobacias repetidas, os risos reiterados – após mais de 15 anos de carreira, Os Trapalhões acumulavam cada vez mais valor às suas imagens, se tornando referências culturais indiscutíveis.

Esse peso de uma fama que ultrapassava os filmes (sucesso absoluto também na TV) talvez tenha sido a responsável pela grande pretensão de O Mágico de Oroz e dos deslizes do modelo trapalhônico. Tratar de um dos mais complexos problemas sociais brasileiros (a seca) de forma alegórica – tentando chegar a um certo aspecto de manifesto público pela solução do problema é um peso difícil de carregar. A ingenuidade, o senso de bondade irresponsável comum às personagens, é oprimido por uma consciência pesada por parte dos artistas/figuras da mídia. O que dá ao filme um aspecto de bolha dramática que Os Trapalhões não conseguem resolver de todo.

Porque a seca, como fenômeno macro-social é muito mais vasta do que a luta apequenada dos artistas de um circo (Saltimbancos), de alguns garimpeiros (Serra Pelada) ou de mendigos na defesa de um menino (Vagabundos)... O Mágico não trata do problema da cidadezinha de Oroz, ou do retirante Didi, mas da questão do “continente esquecido”, pesadamente ditada pela voz jornalística-documental que abre o filme. A ingenuidade, o heroísmo doce dos Trapalhões é ameaçado por essa engajada consciência metonímica do filme.

Após o delirante encontro com um messias (do qual debocham com séries rimadas de piadas) e com o Mágico de Oroz (“não será um mágico charlatão que resolverá o problema da seca”), Os Trapalhões viajam em um osso mágico-nave espacial (2001: uma Odisséia no Espaço) e chegam a uma cidade grande caótica e idealizada. Um Rio de Janeiro onde os patrocinadores do filme brotam com uma curiosa significância dramática (já que representam justamente a presença desse universo de riquezas do sul-maravilha) e de onde roubam uma torneira pública de onde brotaria água (solução mística). Se em toda a sua filmografia pré-Saltimbancos, Os Trapalhões costumavam ser recompensados por sua bravura ingênua, com soluções mágicas; aqui, a solução pela primeira vez, falha. A torneira não jorra água em Oroz. E os quatro são condenados. Decepção.

Pendurados num pau-de-arara, os quatro estão derrotados, impotentes. O filme chega a um dilema inédito na carreira do quarteto: a luta de Didi teria sido inútil? A mistura da tomada de atitude de Os Saltimbancos com as recompensas/dádivas de filmes anteriores, se colocava diante uma ruptura inédita: Os Trapalhões falharam. Não uma pequena derrota passageira como a morte da cadela de estimação de As Minas do Rei Salomão, ou a recorrente solidão do desamado Didi, mas uma falha sem saída: a última das alternativas se tornara estéril.

E aí se abre a fissura final da narrativa, uma esperança passiva toma conta do quarteto, as criativas fugas e acrobacias dão lugar a uma súplica, as brincadeiras dos Trapalhões chegam a seu limite. Dá-se então um salto narrativo, um milagre, um angustiante happy end em erupção diante do espectador:

A chuva cai do céu simplesmente - uma tempestade que liberta independente de toda e qualquer vontade.

Um carnaval se instaura na cidade de Oroz, sem motivação narrativa, sem continuidade dramática – uma licença poética idealizada, ilusória. O filme termina assim, numa grande mentira, numa solução redentora e passageira – como bem sabe o sorridente coronel, que observa a festa popular com deboche. A alegria toma ares melancólicos, uma síntese do espaço da diversão precária. Por um momento, enquanto cai a chuva, os Trapalhões e os moradores de Oroz brincam...e a imagem se congela.

Todo o circo trapalhônico, a participação dos moradores de Oroz como o “respeitável público”, as cavernas de celofane, o osso mágico, a participação de Xuxa (já associando sua imagem à de tia das criancinhas...), as maquiagens expressivas, os chistes, os trocadilhos, a presença de Toni Tornado, abaixam a cabeça diante de uma realidade de que não ousam mais falar em seus velhos termos, de que não querem fazer piada, que escapa a seu espaço circense. Da brilhante brincadeira do caça-urubus da primeira cena, passando pelo referencial realista de José Dumont e Arnaud Rodrigues, pela magia mambembe do musical do tema “Os animais” e do julgamento dos repentistas em praça pública, o filme chega a essa descrença em sua própria narrativa. Desiste de um desfecho trapalhônico e não termina – se congela antes.

Uma pequena mensagem surge na tela, assinada pelos Trapalhões: “(...)e que a chuva que caiu não esfrie as ações das autoridades para acabar com a seca...” Um movimento marcado por um sobrevôo culpado, duvidoso de suas próprias forças – ao mesmo tempo reafirmando suas preocupações e uma certa impotência do cinema diante delas. Os Trapalhões fazem de sua imagem uma isca ao olhar do espectador para uma questão extra-filme e dessa forma sacrificam seu talento. Perdem frescor, perdem espontaneidade: as palavras finais de Didi são como que ditadas por um Renato Aragão ciente de seu papel de moralizador/formador de opiniões. De ídolo das crianças.

Papel que tomaria cada vez maior importância em sua carreira (Unesco) e seria responsável por grande parte das atividades do ator-produtor na década seguinte, após a morte de dois de seus companheiros. O Didi original (dos primeiros 15,16 anos) começava a dar sinais de uma possível fissura em sua inconsequência patética, em sua malícia de palhaço sem rumo, de herói do acaso. Ensaiando uma lenta despedida.

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